A providência de Deus dirige a nossa vida. No entanto, não somos levados
mecanicamente, como se a mão invisível de Deus anulasse a nossa
responsabilidade. É verdade que se deixados para as nossas decisões, elas nos
levariam a caminhos tortuosos, todavia, o Senhor sempre nos preserva em sua
bondade e concorre conosco. A vontade de Deus segue santa e perfeita executando
o seu plano, fiel à sua aliança, em Cristo, conosco. Apesar de nossos
vergonhosos pecados e, não poucas vezes escandalosos, Deus usa de sua
misericórdia para manifestar a sua virtude através de nossas vidas, e tudo para
que somente Ele seja glorificado.
A Escritura narra a
história de Isaque, filho da promessa, e de sua esposa Rebeca. Uma linda
história, cheia de altos e baixos, com contornos da graça e sombras do pecado,
mas nunca ausente da misericórdia de Deus. Esta é a história de Rebeca. Ela era
filha de Betuel, irmã de Labão e sobrinha de Abraão. A sua família vivia em
Arã-Naharaim, na região da alta Mesopotâmia (Gn 24:10). O seu nome literalmente
significa “amarrar firme, atar, prender”.[1] O
seu nome é sugestivo, indicando ser alguém envolvente ou cativante. De fato, a
narrativa bíblica indica que o olhar do servo Eliezer “observava, em silêncio, atentamente,
para saber se teria o SENHOR levado a bom termo a sua jornada ou não” (Gn
24:21). Uma linda jovem que atraia pela sua beleza, mas que cativou os
peregrinos pela sua simplicidade e disposição de servir, de modo tão hospitaleiro,
aquela caravana de estrangeiros. Abraham Kuyper comenta que “apesar de ser de uma
família de boa reputação não tinha medo de sujar os seus dedos.”[2]
Ela não era atraente por ser apenas fisicamente bela, mas pelas suas virtudes
que foi ao encontro das necessidades dos peregrinos.
Após a morte de Sara,
mãe de Isaque, Abraão decide casar o seu filho. Seguidos três anos do
falecimento de sua esposa, Abraão ordena ao seu servo Eliezer que fosse à
região de seus familiares atrás de uma esposa para o filho da promessa. A
preocupação do pai da fé de que o seu filho se casasse com uma jovem de sua
família evidenciava duas de suas premissas pactuais. Primeira, Isaque de modo
algum deveria casar-se com cananitas pagãs. Se Abraão aceitasse tal enlace,
isso implicaria num sincretismo religioso, e ele quebraria a aliança do Senhor
em promover um casamento misto e comprometeria a descendência messiânica. E a segunda
premissa, é que apesar de um casamento com uma jovem cananita pudesse trazer
vantagens em termos de uma pacífica diplomacia com as tribos de Canaã, ela
resultaria na negação da providência divina.[3]
Estas coisas feririam o pacto de Deus, que até ali havia demonstrado
incondicional fidelidade com Abraão, guiando e provendo as suas reais necessidades.
A história salienta como
a direção da providência de Deus controlou a escolha de uma esposa crente para
o filho da promessa. Victor P. Hamilton esclarece que nesta história “acaso e
coincidência não têm vez. Para esse casamento, Deus escolhera a esposa (vv. 14,
44).”[4]
Rebeca foi a providente graça que atraiu o servo de Abraão, para que se
evidenciasse a mão invisível de Deus cumprindo a promessa de sua aliança. O
Senhor preceitua que os filhos da aliança se casem somente com herdeiros
pactuais, e isso se estende do Antigo ao Novo Testamento (Dt 7:3-4; 1 Rs 11:4;
Ed 9; 1 Co 7:39).
A Bíblia menciona a
família de Rebeca numa relação com o pacto de Deus. O seu irmão Labão ao
receber Eliezer, o saúda usando o nome Yawéh, uma prática comum à relação
pactual Deus estabelecida com Abraão (Gn 24:31). Moisés registra que “Labão e Betuel responderam: ‘Isso vem do Senhor; nada lhe
podemos dizer, nem a favor, nem contra. Aqui está Rebeca; leve-a com você e que
ela se torne a mulher do filho do seu senhor, como disse o Senhor.’” (Gn 24:50-51, NVI). A Palavra de Deus
narra a despedida de seus familiares ao que “abençoaram Rebeca, dizendo-lhe: ‘Que
você cresça, nossa irmã, até ser milhares de milhares; e que a sua descendência
conquiste as cidades dos seus inimigos’” (Gn 24:60). Comentando este verso
Derek Kidner observa que “os familiares de Rebeca mal sabiam que a benção que
convencionalmente votaram a ela era um eco das sugestivas palavras ditas por
Deus a Abraão (22:17).”[5]Deus confirmava a sua
vontade para que Eliezer pudesse retornar cumprindo o seu dever e atendida a
sua oração.
O encontro de Rebeca com
Isaque é marcado pela modéstia. Não há paixão inflamada, nem mesmo insinuações
indecentes no momento em que se conheceram. Aproximando do acampamento de
Abraão, e ao saber que o jovem que a aguardava era o seu futuro marido, ela usa
de discrição para que a sua beleza não fosse o primeiro motivo de atração para
o seu marido. Ela não quis chegar exibindo-se a todos da casa de Abraão, pelo
contrário, escolheu ser a alegria dos olhos de seu marido, preferindo esperar
tudo ao seu tempo.
Gradativamente o cenário
muda. Na sequência da narrativa Isaque e Rebeca escandalizaram durante a sua
peregrinação. A sua beleza e não as suas virtudes atraiu a atenção de homens
ímpios. Agrava a sua falha como esposa em consentir com a covardia de seu
marido (Gn 25:20-28). Durante a sua estadia na região de Gerar, Isaque enganou Abimeleque
e os filisteus, mentindo ao dizer que ela era sua irmã (Gn 26:1-11). Motivos
errados e fraqueza somaram para criar um ambiente perigoso. Rebeca em sua
sujeição ao marido manifesta a sua insubmissão ao Senhor. Por fim, foi a
misericórdia do Senhor os livrou de uma desgraça que poderia destruir a família
da aliança.
Deus cumprindo o seu
plano a mantém estéril por aproximadamente 20 anos. Perdida a esperança, então,
o Senhor lhe concedeu os gêmeos, Esaú e Jacó, para que neles, Ele manifestasse
o propósito da eleição. Aqui vemos a soberania guiando a vida de Rebeca e lhe
ensinando que dEle veem os filhos e que são herança do Senhor. Deus em sua
aliança prometeu um descendente e cumpriu, e foi misericordioso com Jacó, mas
não com Esaú.
Na história da redenção Rebeca
será lembrada por seus pecados de preferência por Jacó (Gn 25:28). Ela lançou a
semente de contenda em seu lar, pois com a sua insensatez ela contribuiu para a
inimizade de seus filhos. Novamente Kuyper contribui ao observar que
este tipo de mulher
recatada, essencialmente feminina, pode recorrer a toda classe de meios
domésticos para conseguir os seus propósitos. Não é orgulhosa ou jactanciosa, e
talvez, por isto tende a conseguir as coisas a sua maneira. Isto evita contenda
e contribuí para a harmonia. Mas, também pode ser manipuladora: usar da astúcia
para conseguir o seu propósito, confiando, por exemplo, que ninguém notará.[6]
Ela pecou usando as suas virtudes para trair a confiança do seu marido. Ao
dar um mau conselho a Jacó, usou da mentira para enganar Isaque que não
enxergava. O coração do patriarca pecaminosamente predisposto a Esaú obscureceu
o seu entendimento, impedindo de discernir o tato, olfato e finalmente iludido
pelo paladar, foi facilmente atraído para a mentira de Rebeca.
Com a inimizade
instaurada e a ameaça de morte declarada, Rebeca optou fazer com que o seu
filho mais moço fugisse em vez de se reconciliar com Esaú. Acerca deste trágico
evento, Derek Kidner comenta que Jacó
não precisa partir como
fugitivo, mas contando com o apoio do pai no lar que deixa atrás, e rumando
para o abrigo da família da mãe – e Isaque há de ser quem, de preferência, lhe
sugira a ideia. Com este fim, levantar Rebeca o assunto do casamento de Jacó foi
um golpe de mestre; isto jogava também com o interesse próprio de Isaque e seus
princípios. A perspectiva de uma terceira nora hetéia e de uma esposa
perturbada desfibraria até mesmo um Abraão. A vitória diplomática de Rebeca foi
completa.[7]
Novamente ela usou de sua virtude para seduzir e fazer com que Isaque
decidisse o futuro dos seus filhos. Rebeca manipulou o seu marido fazendo-o
pensar que ele estava escolhendo o melhor para os seus filhos, enquanto a
pecado dela disfarçava-se em cuidado materno, colorido de uma preocupação
pactual. Entretanto, a triste consequência de sua palavra ao filho mais moço, é
que ela morreu sem mais vê-lo. Pecado sempre é pecado e gera consequência. J.G.G.
Norman observa que ela era
uma mulher de vontade
forte e muito ambiciosa, tendo-se devotado primeiramente a seu marido; mas,
posteriormente, transferido essa devoção a seu filho mais novo, isso teve
desastrosos resultados na vida da família, ainda que a sequência demonstre que,
no controle superior de Deus até isso foi convertido para a fomentação de Seu
propósito.[8]
Ela contribuiu com o seu pecado para separar a sua família. O coração de
seu marido se tornou num estranho, e perpetuou a inimizade entre os seus
filhos. Ainda assim, vemos a mão invisível de Deus agindo e cumprindo a sua
soberana vontade. Deus usa pecadores perdoados, vinculados a Ele por meio de
seu gracioso pacto, afim de que, Ele manifeste o seu glorioso propósito de
preparar um povo de propriedade exclusivamente seu, em que descenderia o
redentor prometido. Abundou o pecado para que superabundasse a graça.
Na nova Aliança ela é
lembrada não pelos seus pecados, mas como recebedora da promessa pactual (Rm
9:10). Sabemos que a profecia foi pronunciada a Rebeca antes mesmo que os seus
filhos praticassem o bem ou o mal. John Murray nota que “talvez seja inútil
especular por que Rebeca recebeu a promessa e não Isaque. Todavia devemos que o
ludíbrio por ela planejado e praticado também serve para demonstrar a soberana
graça de Deus, como algo que dominou e foi contrário a todo o demérito humano.”[9]
Apesar dos contínuos conflitos domésticos, nenhum motivo externo e humano de
preferência pessoal poderia influenciar a escolha divina. Isso também nos faz
pensar que apesar de nossos pecados, Deus cumpre perfeitamente o seu plano,
corrigindo-nos como filhos amados e nos abençoando pela sua graça. A nossa
descendência e o seu futuro pertence somente a Ele. O sincero arrependimento
transparente, e por vezes público aos olhos de nosso cônjuge e de nossos filhos,
fortalece os laços do nosso lar.
Pr Ewerton B. Tokashiki
[1] Do
hebraico ribhqâ, que é uma corda
usada para amarrar animais de pequeno porte. Vide* Benjamin Davidson, The
analytical Hebrew and Chaldee lexicon (Peabody, Hendrickson Publishers,
1995), p. 674.
[2] Abraham Kuyper, Mujeres del Antiguo Testamento (Barcelona, CLIE, 1992), p. 43.
[3]
Alfred Edersheim, Comentário Bíblico
Histórico (Barcelona, CLIE, 2009), 6 tomos em 1, p. 69.
[4]
Victor P. Hamilton, Manual do Pentateuco
(Rio de Janeiro, CPAD, 2ª.ed., 2006), p. 109.
[5]
Derek Kidner, Gênesis introdução e
comentário (São Paulo, Edições Vida Nova, 1991), p. 138.
[6] Abraham Kuyper, Mujeres del Antiguo Testamento, p. 43.
[7]
Derek Kidner, Gênesis introdução e
comentário, p. 146.
[8]
J.G.G. Norman, “Rebeca” in: Dicionário da
Bíblia, J.D. Douglas, ed., (São Paulo, Edições Vida Nova, 2ª. Ed., 1995),
pp. 1369-1370.
[9]
John Murray, Comentário de Romanos
(São José dos Campos, Editora Fiel, 2003), p. 376, nota 8.